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Ducrot, adeus Ducrot

Homenagem ao Prof. Oswald Ducrot,  professor Emérito da École des Hautes Études en Sciences Sociales, falecido em 09/06/2024

Assim como o Instituto de Economia da Unicamp, o IEL nasceu de um departamento do IFCH, concebido inicialmente como um  “Grupo de Linguística”, formado por quatro egressos do cursos de Letras, que foram mandados para a França, mais precisamente para Besançon, em 1970, como bolsistas da FAPESP, com o compromisso de obterem o mestrado em linguística. Junto com o Carlos Franchi, o Haquira Osakabe e o Carlos Vogt, fiz parte desse grupo, que retornou ao Brasil em 1971 e que, depois de formar um Departamento de Linguística no interior do IFCH, acabaria constituindo o IEL em 1978, sob a direção do Prof. Antônio Cândido de Mello e Souza. (Na realidade, o projeto de 1970 era o segundo no seu gênero, porque em 1969 tinha sido formado um primeiro “grupo de linguística”, composto por um filósofo, um matemático, um antropólogo e um sociólogo – Luíz Orlandi, André Vilalobos, Ângelo Barone e Antônio Augusto Arantes – que, retornando em 1970, cuidaram da primeira turma de graduação em linguística da Unicamp, e ministraram as primeiras disciplinas de nossa pós-graduação em linguística). Era o tempo em que a linguística era considerada a disciplina-piloto das ciências humanas.

Como pré-condição para cursar o mestrado, o sistema escolar francês nos exigia que obtivéssemos inicialmente a “licence”, e disso nosso grupo deu conta, em Besançon, no primeiro semestre de 1970. Mas, a partir de outubro daquele ano, todos nós saímos de Besançon em busca de uma experiência universitária mais rica: o  Carlos Franchi foi para Aix-en-Provence, os outros três mudamos para Paris. Foi aí que o Vogt conheceu pessoalmente o professor Oswald Ducrot, cuja fama tinha chegado a Besançon, graças aos relatos entusiasmados de uma jovem docente que fazia semanalmente a “navette” entre o rio Seine e o rio Doubs.

Em Paris, Ducrot respondia então por um curso ministrado nas tardes das sextas-feiras no prédio do Collège de France; o Vogt frequentou esse curso como aluno inscrito, e me incentivou a assistir esse curso como ouvinte (sou grato até hoje a ele por isso). Foi nesse contexto que ouvi falar pela primeira vez, na voz do próprio Ducrot, de Frege e seu conceito de pressuposição, de Morris e sua pragmática, e da necessidade de dar à semântica um sentido voltado para a argumentação.

Quando voltamos para o Brasil e para o IFCH, em julho-agosto de 1971, continuavam em andamento por aqui os dois cursos de linguística – a graduação e o mestrado em linguística –  lançados por nossos precursores, e a sobrevivência desses cursos só foi possível graças a algumas colaborações/contratações importantes, que nos vieram da PUC-São Paulo (Leila Bárbara, Mary Kato, John Schmitzs) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Aryon Rodrigues, Antônio Carlos Quícoli) mas, graças às gestões do Vogt, ao discernimento do diretor Fausto Castilho e ao apoio do reitor Zeferino Vaz, conseguimos convidar também alguns de nossos antigos professores franceses: um desses visitantes foi o Jean Peytard, da Universidade de Besançon, que tinha orientado os mestrados meu, do Haquira e do Vogt; outro foi o próprio Ducrot, que, não só ficou por aqui durante um longo período nos últimos meses de 1971 mas, à diferença dos demais franceses, voltou várias vezes nos anos seguintes (quantas vezes? a esta altura, eu não saberia mais dizer), e orientou o doutorado do Carlos Vogt e o mestrado da Rosa Athié Figueira.

A cada retorno, o professor Ducrot trazia novos conceitos, quase sempre expostos em livros ou artigos que eram lidos e discutidos a fundo com ele, e que acabaram recebendo boas traduções: é o caso de conceitos como pressuposto (argumentativo), subentendido, argumentação, escalas argumentativas e topoi – conceitos esses que, depois de assimilados com entusiasmo por nós e nossos alunos, foram também explorados em algumas brilhantes dissertações de mestrado defendidas pelos pós-graduandos daquele período, que assim investiram na “semântica argumentativa”, contrapondo-se a outras linhas teóricas particularmente ricas, tais como a sintaxe chomskiana, a sociolinguística laboviana, ou a pragmática inspirada em Grice. Das traduções de obras de Ducrot que saíram naquele período, cito de memória Dizer, não dizer, princípios de semântica linguística O dizer e o dito e lembro que é de pouco posterior um trabalho denso e primoroso, escrito em parceria por Vogt e por Ducrot, que foi objeto de publicações quase simultâneas em português do Brasil (com o título “De magis a mas”) e em francês (“De magis à mais”), esta última na prestigiosa Revue de linguistiques romane. Quem leu esse texto sabe que ele não se propõe a convencer o leitor de que o nosso mas (como seu correspondente francês mais) deriva do advérbio latino magis, o que seria uma banalidade para qualquer romanista, mas sim que essa derivação absolutamente não teria sido possível se o advérbio latino não passasse por usos que só uma semântica argumentativa é capaz de explicar a fundo.

As décadas de ’80 e ’90 foram bastante agitadas para mim. Só voltei a ver o professor Ducrot em agosto de 2001, num evento na Federal de Santa Catarina em que ele foi o keynote, ministrando algumas palestras sobre suas últimas pesquisas e, como sempre, oferecendo cursos em vários níveis. Evidentemente, o Ducrot estava mais velho mas, diante de uma lousa e explicando mecanismos interpretativos envolvidos em frases problemáticas, era o mesmo professor jovem e brilhante que eu tinha conhecido em 1971 na Rue des Écoles:  a mesma tensão, o mesmo cigarro alternando-se entre os dedos dele com um pedaço de giz, o mesmo brilho nos olhos e o mesmo sorriso quando chegava a uma solução inesperada mas absolutamente convincente.  Naquele congresso, eu apresentei uma comunicação sobre delocutivos. Minha comunicação não devia ter grandes novidades para ele, mesmo assim ele me ouviu com muita paciência, e me recomendou algumas leituras que fiz depois – absolutamente relevantes: essa era uma outra característica dele: o profundo conhecimento da bibliografia linguística em língua francesa, inglesa ou alemã, junto com uma familiaridade inigualável com a grande literatura francesa.

Depois de uma vida e uma vivência riquíssima, o Ducrot se foi, e eu sou um dos tantos que gostaria de reencontrá-lo, e não só através de seus escritos.  Do que falaríamos? Certamente de linguística, do Instituto que ele nos ajudou a criar, de como os debates sobre Semântica Argumentativa dos anos 1970 acabaram sendo substituídos por outros debates, mas acrescentaram uma agudeza e uma sensibilidade desconhecidas ao raciocínio semântico. Mas eu também o provocaria, retomando algumas conversas não tão linguísticas e não tão sérias, que ficaram interrompidas na década de 1970. Uma dessas conversas dizia respeito à expressão “double débrayage”. O contexto em que essa expressão apareceu era o seguinte: o Ducrot queria levar a esposa e os dois filhos até Brasília, essa capital cuja construção no meio do cerrado impressionava o mundo, e para isso alguém tinha arranjado um fusca 1100 emprestado. Quando o fusca ficou disponível, ele aceitou a oferta, e nos garantiu solenemente que o devolveria em perfeitas condições, aplicando o tal double débrayage a cada mudança de marcha. Os Ducrot foram e voltaram, e o fusca retornou em condições impecáveis; mas eu fiquei sem saber o que vinha a ser o tal de double débrayage que protege a caixa de câmbio do carro. Tenho certeza de que o Ducrot resolveria facilmente esse problema, mas temo que uma conversa a respeito nos levaria de volta à bibliografia linguística, quem sabe ao capítulo dos Problèmes I de Benveniste em que se fala dos embrayeurs: como todos sabem, os linguistas são obsessivos, insistem interminavelmente no mesmo assunto e gostam de etimologias.

Autor: Prof. Rodolfo Ilari, Professor Emérito e ex-Diretor do IEL

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