Resumo: Em 1266, a Legenda Maior, escrita por S. Boaventura (1221-1274), foi decretada hagiografia oficial de S. Francisco de Assis (1181/82-1226). Nessa obra, o autor apresenta o santo como sendo o anjo que subia do Oriente e que carregava o selo do Deus vivo, conforme descrito no livro do Apocalipse (7,2). Esse selo, por sua vez, é apresentado, no mesmo texto, como figura dos estigmas que Francisco teria recebido no Monte Alverne, onde um serafim com seis asas de fogo, como narrado no livro do profeta Isaías (6, 2), teria lhe aparecido e impresso as chagas de Cristo. Desse modo, essa personagem hagiográfica foi glosada como o "serafim chagado", prefigurado nas Sagradas Escrituras, interpretação que denominamos "hermenêutica seráfica". Em Portugal, esse tipo de exegese seria empregado por alguns autores na caracterização do santo, principalmente a partir da publicação das Crónicas da Ordem dos Frades Menores (1557-1570), de Frei Marcos de Lisboa (1511-1591). Escrita em língua portuguesa, a Vida de Francisco presente nessa crônica historiográfica seria tomada como modelo por parte dos autores que escreveriam sobre Francisco nesse país. Tendo em vista essa problemática, investiga-se a presença da "hermenêutica seráfica" na construção dessa personagem santoral em textos de diferentes naturezas (prosa hagiográfica, sermões e poesia) pertencentes à cultura letrada portuguesa e produzidos entre os séculos XVI e XVIII. Demonstra-se também que a imagem deste "serafim chagado", em alguns casos, foi utilizada pelos franciscanos portugueses para justificar o lugar central deles na implantação do Reino de Cristo na Terra, uma vez que estavam empenhados na construção de um simbólico "orbe seráfico-português" e na interpretação de Portugal como um "novo povo eleito" presente na história da salvação.
Palavras-chave: Francisco, de Assis, Santo, 1182-1226; Marcos, de Lisboa, Bispo do Porto, 1511-1591; Hagiografia; Alegoria; Hermenêutica (Religião).